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A nação brasileira perderá um ativo de valor incomensurável



Decio Luiz Gazzoni

Nada poderia ser mais lamentável e evitável do que se assistir a despedida dos grandes nomes da ciência agrícola brasileira, todos empregados públicos da Embrapa, simplesmente por atingirem a idade de aposentadoria compulsória. Como se a ciência tivesse prazo de validade!

Voltemos um pouco mais de 50 anos no tempo: o Brasil era um importador de alimentos, nos faltavam alimentos básicos, entre outros produtos essenciais à vida. Nossas áreas rurais eram marcadas pela pobreza, enorme desigualdade social, baixa produtividade, poucos empregos e oportunidades de renda, todos de baixo retorno. As tecnologias que usávamos eram importadas dos países mais desenvolvidos, do hemisfério Norte. Nossa balança comercial era precária, nos faltavam divisas para tudo até para importação de alimentos, energia e medicamentos.

Foi quando a Embrapa foi criada.

A produtividade no campo multiplicou-se inúmeras vezes, a ponto de o agronegócio representar, hoje, entre um terço e um quarto do PIB nacional. Hoje, o Brasil é o grande gerador e detentor de tecnologia agropecuária para a faixa tropical do planeta, demandado por dezenas de outros países. O agronegócio transmutou-se em um grande empregador de mão-de-obra qualificada, respondendo por mais de duas dezenas de milhões de empregos. Nossa balança comercial é altamente superavitária – devido, exclusivamente ao agronegócio, posto que os demais setores são deficitários.

O condão central dessa revolução única na História Mundial foi o desenvolvimento tecnológico acelerado que ocorreu nos últimos 50 anos. Jovens pesquisadores, cheios de energia e entusiasmo – embora com pouco conhecimento e experiência – transformaram o ambiente de pobreza, desigualdade e sem oportunidades em um exemplo de sucesso mundial, de elevada produtividade, sustentabilidade e competitividade. Hoje, o retorno social da Embrapa (2024), que devolve impressionantes de R$ 25,37 para cada R$ 1,00 investido na empresa, é parte ponderável que se deve àqueles jovens contratados na criação da Embrapa.

Foram centenas, quiçá milhares, de tecnologias desenvolvidas no meio século de existência da Embrapa, o que torna difícil destacar algumas sem correr o risco de injustiças. Merece destaque o plantio direto, que tornou possível expandir o cultivo para mais de 70 milhões de hectares Brasil afora, eliminando o risco da erosão que dilapidava nossos solos há 50 anos. Um exemplo mundial de sustentabilidade.

A cultura da soja é outro exemplo de quebra de paradigma: essa cultura originária no nordeste da China, a 54º de latitude, foi “tropicalizada” pelos jovens cientistas da época, e é cultivada em todo o território nacional – feito único no mundo. Programas de manejo de pragas evitaram a aplicação de milhões de litros de pesticidas, reduzindo os índices de intoxicação humana, de agressão ao ambiente, diminuindo o custo para o produtor e poupando bilhões de dólares em importação. Fruto do trabalho dos jovens cientistas contratados na criação da Embrapa.

A lista é extensa, mas ressaltemos alguns exemplos do presente. Os três únicos brasileiros premiados pelo Prêmio Nobel da Agricultura (World Food Prize), são ou oriundos, ou vinculados, aos trabalhos da Embrapa: Edson Lobato, pesquisador da Embrapa Cerrados e o ex-ministro da Agricultura Alysson Paulinelli, conjuntamente condecorados em 2006, e agora, em abril de 2025, outra pesquisadora brasileira da Embrapa, Mariangela Hungria, foi agraciada com o respeitadíssimo Prêmio Nobel.  Ironicamente, todos da “velha guarda” de cientistas brasileiros.

Aqueles jovens pesquisadores contratados pela Embrapa, em seu início, cheios de energia, mas com conhecimento limitado e quase nenhuma experiência, conseguiram feitos incríveis. Hoje, são septuagenários, continuam cheios de energia, mas com conhecimento e experiência inigualáveis. Uma verdadeira elite intelectual, um ativo, um patrimônio da Nação brasileira. Ocorre que os outrora jovens inexperientes, hoje constituem um celeiro de sabedoria, conhecimento e experiência, um grande ativo da Nação, um patrimônio inestimável, porém, ironicamente, à beira de serem remetidos ao ostracismo.

O que levaria uma Nação a descartar tamanho ativo, que tanto custou em termos de investimento de recursos públicos? Ocorre que a aposentadoria compulsória é obrigatória para servidores públicos que completam 75 anos, conforme o artigo 40, § 1º, inciso II, da Constituição Federal. O leitor poderia argumentar: mas quem trabalha na Embrapa não é servidor público, logo o dispositivo constitucional não se aplicaria.

Mas... sobreveio a reforma da previdência de 2019. Brevemente, nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá definir se a regra constitucional que prevê a rescisão compulsória do contrato de trabalho do empregado público que completar 75 anos de idade, se pode ser imediatamente aplicada ou se é necessário editar uma lei complementar para regulamentar a medida.

Data máxima vênia dos senhores ministros do STF, entendemos que o dispositivo não é autoaplicável, pois impõe a necessidade de regulamentação por lei complementar (§ 16. Os empregados dos consórcios públicos, das empresas públicas, das sociedades de economia mista e das suas subsidiárias serão aposentados compulsoriamente, observado o cumprimento do tempo mínimo de contribuição, ao atingir a idade máxima de que trata o inciso II do § 1º do art. 40, na forma estabelecida em lei."). Lei essa que não foi discutida e aprovada no Congresso Nacional, o que remete o feito à apreciação do Judiciário.

Completei 75 anos há um mês. O jovem que ingressou na Embrapa em 1974 hoje é um repositório de conhecimento e experiência, que seria extremamente útil à nossa Pátria. Julgo-me em perfeitas condições de continuar contribuindo para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do Brasil por, no mínimo, mais uma década. Retribuindo o investimento que foi efetuado em mim pela sociedade, com o suado dinheiro dos seus impostos.

Pelo que tenho perscrutado junto aos demais colegas em situação similar, tenho convicção de que esse é o pensamento dominante. Não temos interesse em ser remetidos a um ostracismo que nada serve à Nação, ser transformado em “lixo intelectual não reciclável”. Perceba-se a ironia: aquela mesma colega que referi acima, que recebeu, neste ano, o “Prêmio Nobel da Agricultura”, louvada em prosa e verso no Brasil e alhures, em poucos anos será chamada no setor de recursos humanos e dispensada com nada mais que um obrigado formal. O seu conhecimento, a sua experiência, que poderiam contribuir muito mais para o desenvolvimento do Brasil será relegado ao baú do tempo, sem qualquer utilidade para a nossa sociedade.

Não é assim que são tratados os cientistas de países desenvolvidos, que possuem inúmeros mecanismos para reter sua inteligência a serviço de suas nações e seus povos. Isso pode fazer toda a diferença no desenvolvimento das nações.

Leitores, esse texto é um apelo desesperado, de uma alma que está de luto porque pode ser impedida de continuar contribuindo para a grandeza do Brasil, assim como centenas de outros colegas que serão forçados a vestir o luto e a frustração de um ostracismo forçado, quando se encontram no auge de sua capacidade intelectual.

 

O autor é pesquisador da Embrapa, membro do Conselho Consultivo Agro Sustentável, da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e do Comitê Científico da ABELHA.

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